sábado, 17 de junho de 2017

O QUE ACONTECE COM UM ATLETA DE ALTO RENDIMENTO QUANDO ELE “SE APOSENTA”? PROFESSOR DÁ EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA:

Estudo com ex-multicampeão de ciclismo apresenta números impressionantes

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Será que ele continua forte? Vamos considerar aposentadoria como uma redução no volume (o número de treinos na semana) e intensidade (o quão forte é cada treino), mas sem parar de praticar o esporte. Parar seria abandonar o ciclismo. Nosso exemplo será o espanhol Miguel Indurain (5 vezes campeão do Tour de France 1991-1995, 2 vezes campeão do Giro d’Italia 1992-1993 e Campeão Olímpico 1996), cujos dados de desempenho 14 anos após sua aposentadoria foram publicados em um artigo científico – citado abaixo. Na época da avaliação, Indurain treinava durante 6 meses no ano, com volume anual de no máximo 8.000 km (eram mais de 25 mil anuais quando competia) com frequência cardíaca abaixo de 165 bpm (batimentos por minuto). A avaliação incluiu um teste progressivo máximo com medidas de consumo de oxigênio (VO2), frequência cardíaca (FC) e lactato. Os resultados de Miguel Indurain após 14 anos de aposentadoria impressionam.

Potência máxima: 450 W. Isso significa uma razão potência/massa corporal de 4,88 W/kg. A quantidade de massa muscular, especialmente nos membros inferiores de um ciclista treinado, exerce influência direta sobre a quantidade de potência produzida. Além de ajudar em sprints, isso também é importante para manter elevadas velocidades durante as provas.

Consumo máximo de oxigênio (VO2MÁX): 5,29 L/min. Importante olhar para o valor de consumo de oxigênio relativo à massa corporal, que foi de 57,4 mL·kg–1·min–1, considerado excelente (>42 mL·kg–1·min–1) pelo American College of Sports Medicine para os 46 anos de idade que Indurain tinha quando foi avaliado. Embora o valor de VO2MÁX como determinante do desempenho seja questionável, todo ciclista profissional acaba apresentando valores de VO2MÁX elevados.

Frequência cardíaca máxima: 191 bpm. Aqui percebe-se a limitação no uso da fórmula “220 – idade” para predizer a frequência cardíaca máxima (FC máxima) de atletas. Existem situações em que a FC não refletirá muito bem a intensidade do esforço, e por isso atualmente os atletas também estão controlando a intensidade de esforço por meio de medidores de potência e pela percepção subjetiva de esforço. Aliás, a percepção subjetiva do esforço é muito útil e falarei sobre ela em um post futuro.

Na Figura abaixo fiz uma comparação dos dados de Indurain em 1994 (competindo) e em 2010 (aposentado). A figura mostra valores de VO2 (relativo à massa corporal e absoluto, na coluna da esquerda) e potência (relativa à massa corporal e absoluta, na coluna da direita) máximos (obtidos no final do teste), relativos ao OBLA (onset of blood lactate accumulation, momento em que a concentração de lactato no sangue atinge o valor de 4 mmoles/L) e ao limiar de lactato individual (LLI, que leva em consideração o comportamento da curva do lactato em função do aumento das cargas de trabalho durante o teste de esforço). Não vou entrar no mérito de como essas medidas de lactato importantes para o treinamento são feitas, mas deixo algumas referências no final do texto. O fato é que quanto maior o VO2 e a potência produzida no momento do OBLA e do LLI, maior é a capacidade do atleta em manter um predomínio aeróbico no exercício, o que é uma excelente estratégia para ciclistas de estrada. Como era de se esperar, a aposentadoria refletiu perdas de desempenho aeróbico.

Mesmo aposentado, Indurain apresentou LLI a uma intensidade de 73,1% da potência máxima e 80,9% do VO2MÁX. Já o OBLA ocorreu em 82% da potência máxima e 88,5% do VO2MÁX. A queda no desempenho aeróbio relativo à massa corporal (VO2MÁX e VO2 na intensidade do OBLA) na aposentadoria foi de 27,3% e 36,5% respectivamente. Parte dessa redução se deve ao destreinamento, mas também há uma influência importante do aumento da massa corporal, pois no momento da avaliação em 2010 Indurain tinha 92,2 kg, 14% a mais do que em 1994. O percentual da FC máxima onde ocorreu o LLI foi similar em 1994 e 2010. Em 1994 essa transição metabólica aconteceu em 83,5% da FC máxima, e em 2010 a 83,2%. Isso aconteceu porque uma queda na intensidade correspondente ao limiar de lactato individual foi compensada pela redução na FC máxima durante o período. Por isso, olhar apenas para os dados de FC pode ser limitante na análise do desempenho do ciclista.

Nos 14 anos de aposentadoria Indurain perdeu cerca de 12% de condicionamento aeróbico por década, e a produção de potência no limiar individual de lactato diminuiu cerca de 20%. O aumento na massa corporal pareceu ser o principal determinante da diminuição do desempenho do atleta.
Sendo assim, para manter um bom rendimento após sua “aposentadoria” das competições é fundamental controlar a massa corporal, já que o atleta aposentado parece conseguir manter ótimos níveis de esforço e valores absolutos de parâmetros fisiológicos, mas o nível de desempenho é prejudicado pelo aumento na massa corporal. Além disso, é importante realizar testes de esforço periodicamente, com o objetivo não só de quantificar o desempenho, mas também ajustar as cargas de treinamento de maneira adequada, o que refletirá uma melhor manutenção ou incremento da condição física, dependendo do objetivo buscado junto ao seu treinador.

Contribuiu para este texto o prof. Mateus Rossato. Para quem quiser ler mais, deixo algumas referências:

Quem estudou o Miguel Indurain aposentado: Mujika, I. The Cycling Physiology of Miguel Indurain 14 Years After Retirement. Int J Sports Physiol Perform. 2012;7, 397-400.

Sobre o OBLA: Sjödin B, Jacobs I. Onset of blood lactate accumulation and marathon running performance. Int J Sports Med.1981;2:23–26.

Sobre o LLI: Hagberg JM, Coyle EF. Physiological determinants of endurance performance as studied in competitive racewalkers. Med Sci Sports Exerc. 1983;15:287–289.

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